Após mais de um ano da tentativa de remoção, a Vila Vicentina resiste na batalha para regulamentação das ZEIS

A Vila Vicentina da Estância resiste no bairro Dionísio Torres. O lugar abriga 45 famílias, sobretudo idosos e viúvas, entre a rua Nunes Valente e a avenida Antônio Sales. Mais de um ano se passou desde a tentativa de reintegração de posse, com a demolição de três casas e a intervenção em outras cinco, motivada pela suposta venda do terreno entre a Sociedade São Vicente de Paula e a construtora BSPAR. A comunidade, hoje, dispõe de duas frentes de luta para se manter no local. A primeira é a regulamentação da Vila Vicentina enquanto ZEIS do tipo 1, a outra é o processo de tombamento da vila.

A ZEIS Dionísio Torres, como é chamada a Vila Vicentina, abarca todo o quadrilátero. ZEIS é a sigla para Zona Especial de Interesse Social. Esta corresponde a um tipo de zoneamento urbano e demanda um tratamento especial e prioritário. Prioridade, principalmente, a respeito de investimentos. Conforme o relatório feito pelo Comitê Intersetorial e Comunitário das ZEIS, com elas, pretende-se facilitar a regularização fundiária e a urbanização de assentamentos precários. As ZEIS são um instrumento nacionalmente previsto no Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2001.

Entrada da Vila Vicentina – foto Antonio Carvalho

De acordo com a lei, elas devem estar previstas no Plano Diretor Participativo das cidades. Para Valéria Pinheiro, pesquisadora do Lehab, Fortaleza está muito atrasada com a previsão desse instrumento. Isso porque apenas em 2009, com a construção do Plano Diretor Participativo, se conseguiu inserir as ZEIS. “É preciso que se diga que a previsão das ZEIS foi fruto de muita luta, muito processo de discussão dentro do Fórum de Reforma Urbana”, afirma Valéria. No entanto, o Plano Diretor Participativo não detalha a efetivação do instrumento, trazendo que é necessário outra lei para regulamentá-lo, e detalhando, dentre outras coisas, o Plano Integrado de Regularização Fundiária, PIRF.

Então, a sociedade civil conseguiu que a prefeitura instituísse um Comitê Interdisciplinar de Regulamentação da ZEIS. Após um ano e meio de trabalhos, o Relatório da ZEIS foi entregue ao prefeito Roberto Cláudio. Em 2016, “o tal do Comitê virou uma Comissão”, como conta a pesquisadora, e passaram a discutir a legislação regulamentadora das Zonas Especiais de Interesse Social, terminando em setembro do ano passado. “Conseguimos avançar nesse sentido, com as propostas que foram entregues ao prefeito, agora como propostas de Projeto de Lei a serem votados na Câmara e outros documentos a serem encaminhados para sua concretização”, relata.

De acordo com o Plano Diretor Participativo de Fortaleza, existem três tipos de Zonas Especiais de Interesse Social. O Relatório das ZEIS especifica as características de cada uma. As de tipo 1 são de Ocupação, nas quais predominam assentamentos irregulares com ocupações desordenadas. As de tipo 2 são denominadas ZEIS de Conjunto, assim, são compostas por loteamentos clandestinos ou irregulares e conjuntos habitacionais. Já as de tipo 3 são formadas por áreas dotadas de infraestrutura, com concentração de terrenos não edificados ou imóveis subutilizados ou não utilizados, devendo ser destinadas à implementação de empreendimentos habitacionais de interesse social.

Vila Vicentina é ZEIS!

Conforme explica Valéria Pinheiro, a Vila Vicentina entrou na lei do Plano Diretor como ZEIS do tipo 1. Isto porque se trata de um assentamento precário e é ameaçada de remoção, “não necessariamente é uma característica crucial das ZEIS, mas é uma característica importante, porque serve para garantir a presença daquelas pessoas ali”, afirma. Nesse caso, os moradores não tinham conhecimento do local como uma zona especial. Apenas após o Lehab as informar, que a comunidade começou a se mobilizar, se organizar e participar da Frente de Luta por Moradia. Por isso, conseguiu, posteriormente, se tornar uma das 10 ZEIS prioritárias a serem implementadas em Fortaleza, tendo sido isto deliberado na comissão das ZEIS. “

A demolição de três casas na Vila Vicentina

A Vila ter sido ameaçada de remoção foi um dos fatores que a fez estar entre as ZEIS prioritárias. O quadrilátero que hoje se encontra a comunidade foi doado pela família do Dionísio Torres à Sociedade São Vicente de Paula. Na década de 1940, o local com 42 casas passou a abrigar idosos e viúvas de baixa renda, como o caso da atual moradora Dona Fátima. Ela mora na Vila Vicentina há 22 anos e veio de um despejo. Por não conseguir pagar aluguel em outro local, ocupou uma casa na Vila. Muitas das casas antes ocupadas pelos primeiros moradores foram passadas entre as gerações.

Em agosto de 2016, porém, começou uma pressão psicológica para que os moradores saíssem da Vila. De acordo com a advogada popular Mayara Justa, que acompanhou o caso, uma representante da construtora BSPAR passou a pressionar os habitantes para que aceitassem desocupar os imóveis em troca de 50 mil reais ou um apartamento em Maracanaú. “Mas não era esclarecido como seria esse apartamento. Os moradores começaram a ficar com medo, porque era dito coisas como: vocês tem que sair, porque a vila já foi vendida, qualquer momento vai chegar um trator e passar por cima da casa de vocês”, relata. Esses foram os primeiros relatos que chegaram ao Escritório de Direitos Humanos Frei Tito de Alencar.

Mayara conta que cerca de 8 moradores negociaram a saída da Vila com a empresa. Nas casas desocupadas, conforme a advogada, foram colocados homens estranhos à comunidade. Para Dona Fátima, esses homens estavam ali para impedir que as casas vazias fossem reocupadas, no entanto, eles causaram certos incômodos à comunidade: “chegavam de moto, cantando pneu, chegavam fora de hora, botavam música alta. A gente vivia assustado porque não estávamos acostumados com eles, não conhecíamos”, afirma. Assim, os moradores exigiram a saída desses.

No dia 27 de agosto, chegou na comunidade a liminar do pedido de reintegração de posse feito pela imobiliária responsável. Mayara Justa, como advogada responsável do caso, descobriu que “o juiz deferiu o pedido de reintegração de posse para o Conselho Vicentino, mesmo sem apresentar um documento hábil de que a posse do imóvel fosse deles. Eles também não conseguiram comprovar a propriedade, porque o registro do imóvel está no nome de Dionísio Torres doando para a sociedade São Vicente de Paula”, explica.

No dia posterior, pela manhã, um oficial de justiça, policiais militares e trabalhadores, com tratores, foram à Vila realizar o despejo, “o que se chamava de reintegração de posse, no papel que ele trazia, se transformou em demolição das casas”, diz Dona Fátima. Dessa forma três casas da Vila Vicentina foram demolidas e outras cinco tiveram suas paredes internas derrubadas. O caso chamou atenção da mídia local, que passou a cobrir a tentativa de remoção. Sobretudo após a apreensão do ator e jornalista Ari Areia por fotografar o acontecido. Somente no final do dia, Mayara conseguiu que o juiz responsável suspendesse parcialmente a ordem, e determinasse que qualquer ato demolitório resultaria na pena de multa de diária de 100 mil reais. Enquanto isso o processo continua. “O Conselho Vicentino recorreu ao tribunal de justiça, tem um recurso correndo que se a desembargadora der ganho do recurso para eles, vão poder voltar a tomar posse das casas que restaram”, explica a advogada.

Após o ocorrido, os moradores formaram o grupo Resistência Vila Vicentina, que já completa mais de um ano.“O nosso interesse é que tenhamos mais apoiadores expondo nossa situação, nossa angústia, nosso anseio”, expressa Dona Fátima. Os entulhos da demolição continuam lá, como uma lembrança do ocorrido. A Vila é formada por casas geminadas, em que são ligadas por uma parede, dessa forma, os ocupantes estão vulneráveis e temem a violência que, a qualquer momento, pode os atingir.

Pedido de tombamento

            Durante o alvoroço da demolição, o professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará Romeu Duarte, o vereador Guilherme Sampaio e o ex-vereador João Alfredo solicitaram pedidos de tombamento da Vila Vicentina. Segundo o professor, o local “representa uma tipologia arquitetônica residencial extinta em nossa cidade”. Além de se envolver com a história do bairro, a Vila também vai de encontro com a quantidade de prédios no entorno. “Por essas razões, entendemos que a Vila deva ser tombada por se constituir em um documento histórico, arquitetônico, urbanístico, ambiental e antropológico da cidade de Fortaleza”, explica.

Um estudo assegurando esses valores anteriormente descritos foi entregue à SECULTFOR. Agora, resta a equipe técnica da Coordenação do Patrimônio Histórico e Cultural da secretaria analisar a procedência e a pertinência dos pedidos e elaborar uma instrução de tombamento para o bem imóvel. Posteriormente, o Conselho Municipal de Patrimônio Histórico e Cultural – COMPHIC elabora um parecer acerca do tombamento. Esse é votado no COMPHIC. Se aprovado, vai à sanção do secretário municipal de Cultura e do prefeito de Fortaleza. Se a Vila Vicentina for tombada, será criada um regulamento específico para manter estruturalmente a Vila, já que se tornará um patrimônio da cidade, esse deverá ser acompanhado de perto pelos moradores. Reformas ou qualquer outra alteração na estrutura das casas, depende desse regulamento.

Mais um caso sintomático

Este é mais um exemplo de remoção e de contínua ameaça de remoção em que a prefeitura de Fortaleza se omitiu na proteção dos moradores, cujo direito assegurado por ser ZEIS foi atropelado por interesses privados. Mas a comunidade está organizada e resiste às investidas.

*Matéria produzida por Aline Medeiros, estudante do Curso de Comunicação Social da UFC e bolsista do Lehab.

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