Grande número de remoções realizadas pelo município agrava o problema da habitação

Observatório de Remoções – Fortaleza

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), remoção forçada é a retirada de famílias ou comunidades, contra sua vontade, de casas ou terras que ocupam, sem garantir os direitos dos envolvidos e soluções apropriadas. Em Fortaleza, a remoção é uma prática bastante utilizada pelo poder público, sobretudo para retirar famílias de terrenos públicos que já tenham destinação, ou de vias públicas. Nos levantamentos feitos pelo Laboratório de Estudos da Habitação da UFC, Lehab, a partir de denúncias que chegam no Escritório Frei Tito Alencar de Direitos Humanos (EFTA) e o Núcleo de Habitação e Moradia (NUHAM) da Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará, mais de 23.000 famílias foram alvo de ameaças ou remoções, nos últimos 9 anos em Fortaleza. Muitos desses despejos acontecem na ilegalidade, por não haver um processo judicial ou administrativo, além de constantemente haver denúncias de violência policial, e outras violações aos direitos humanos, no momento da remoção.

Todo cidadão tem direito à moradia adequada, desse decorre a proteção contra remoções forçadas. Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o direito à moradia adequada se tornou um direito reconhecido internacionalmente, cabendo aos Estados promover e proteger esse direito. Para a advogada popular Mayara Justa, do Escritório Frei Tito de Alencar, o direito à moradia deve ser entendido de forma mais ampla, “não é só mesmo a casa, é você ter acesso à cidade, é você está ali perto da sua comunidade, os laços comunitários são importantes”, comenta. Para a Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, o direito à moradia adequada diz respeito ao acesso próximo à educação, saúde, lazer, transporte, energia elétrica, água potável e esgoto, coleta de lixo, áreas verdes e um meio ambiente saudável.

Atendimento às comunidades

O Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), ligado à Assembleia Legislativa, presta assessoria jurídica popular, sobretudo para causas coletivas, comunidades, movimentos sociais ou causas individuais que tenham repercussão coletiva. O escritório trabalha com direitos humanos através do atendimento, atuando principalmente em Fortaleza. A maioria dos casos acompanhados pelo escritório são de violações ao direito à cidade e à moradia digna. A comunidade, geralmente, procura o EFTA quando está ameaçada de remoção ou, também, na hora do despejo. “Nesses casos que está acontecendo a remoção, vamos até o local e tentamos, minimamente, que as pessoas não tenham mais direitos violados”, explica Mayara. De acordo com a advogada, a demanda do primeiro semestre de 2016 pro primeiro semestre de 2017 aumentou 100%, “são milhares de famílias atendidas e que estão sendo despejadas”.

Outro órgão que também presta serviço atendendo comunidades em casos de violação ao direito à moradia digna é o Núcleo de Habitação e Moradia da Defensoria Pública Geral do Estado (NUHAM). Após o termo de declaração da comunidade e o procedimento preparatório – em que se coleta a documentação necessária sobre a mesma -, recorre-se a ajuizamento. No entanto, tem sido preferido tentar um acordo administrativo “ainda que um acordo parcial – com o dono do terreno, porque as ações que a gente tem ajuizado, o judiciário não tem dado muita guarida, que eles entendem que o direito do proprietário é sagrado, [direito à] moradia não existe”, explica o defensor público José Lino Fonteles, do NUHAM.

A ilegalidade nas remoções em Fortaleza

A Organização das Nações Unidas, ONU, publicou, com a supervisão da professora Raquel , o guia “Como atuar em projetos que envolvem despejos e remoções? ”, desenvolvido especificamente para remoções causadas por obras de infraestrutura e urbanização. De acordo com o guia, as remoções e os despejos forçados devem ocorrer quando não há outra alternativa. Dividido em antes, durante e depois, o guia afirma que a população deve ter o direito de se defender, inclusive judicialmente, através de assistência judiciária gratuita, além de tempo e condições para que a comunidade se prepare para a remoção. Com o acompanhamento de funcionários públicos, a remoção não deve resultar em famílias desabrigadas, nem em bens materiais destruídos. O agente responsável pela remoção é responsável por cobrir seus custos, entre outras exigências publicadas pela ONU.

Em Fortaleza, as remoções realizadas pela Prefeitura são, instrumentalmente, feitas pela Guarda Municipal. De acordo com a advogada do EFTA, Mayara Justa, nessas remoções, a Prefeitura alega que os terrenos em que ela está removendo, são terrenos públicos que já tem uma destinação, ou é uma via pública, “só que a gente percebeu que, algumas vezes, a Prefeitura realizava despejo em terreno que não era dela”. A advogada relata que, “na última sexta-feira, eu fui para um despejo que, segundo fiscal que estava lá presente fazendo o procedimento, disse que agora sequer uma ordem administrativa chega até eles”.

Segundo Mayara conta, a Prefeitura se utiliza do “poder de polícia” para remover as ocupações, “embora exista o poder de polícia, tem de haver o devido processo legal”, ou seja, deve ser garantido o direito às famílias de se defenderem judicialmente, além dar a elas condições para a retirada de pertences. O Doutor Fonteles, do Núcleo de Habitação e Moradia, também atesta essa prática nas remoções que acompanha: “acontece que o município entende que tem o poder de auto executoriedade e por conta desse poder, ele passa o trator por cima até de casas de alvenaria com gente morando, tira as pessoas de dentro a força”. Para o Escritório Frei Tito de Alencar, com a falta de um procedimento administrativo, a Prefeitura age na ilegalidade, no entanto, a questão não é haver uma “humanização dos despejos”, “a gente quer que não faça despejo de jeito nenhum, queremos que as pessoas sejam colocadas em programas de habitação e que a prefeitura cumpra o que o direito prevê, que é entrar com ação judicial para que haja alguma remoção”.

Em análises preliminares, o Lehab constatou que, na Região Metropolitana de Fortaleza, somente cerca de 30% dos casos mapeados de despejo tiveram ordem judicial clara e em mais de 57% houve algum tipo de violência. Entre os casos de remoção acompanhados, o defensor lembra o despejo do Alto da Paz, em 2014, como um exemplo de violação dos direitos da comunidade, “lá havia uma negociação em curso e a Prefeitura descumpriu essa negociação, aí chegou com uma quantidade excessiva de policiais, retirou as famílias a força, com bala de borracha, com cães, com bomba de gás”. A comunidade do Alto da Paz foi removida, sob alegação de urgência, para a construção de unidades habitacionais do Minha Casa Minha Vida, e até hoje as obras não tiveram início. Já a advogada Mayara Justa recorda de um despejo ocorrido no bairro Edson de Queiroz, em que a comunidade foi removida mais de uma vez: “no último despejo, para não destruírem o material de construção de uma casa, que era uma mulher grávida, ficou eu e outra advogada do escritório tirando os tijolos com nossas próprias mãos”.

Porque as remoções ocorrem e suas consequências

De acordo com o professor Renato Pequeno, coordenador do Lehab, as remoções revelam problemas na forma desigual que a cidade foi produzida. “Algumas partes da cidade vão se tornando mais valorizadas, e, à medida que existem essas partes mais valorizadas, os setores da cidade que ficaram mais vulneráveis acabam sendo potencializados como alvos de remoção”. O professor conta que, historicamente, os primeiros planos de urbanização de favelas em Fortaleza já consideravam que a intervenção na favela não era a urbanização dessa, mas a remoção, “depois, como não houve uma medida efetiva para atuação nas áreas de favelas, essas áreas até aumentam”. Isso porque o município não reassenta as famílias removidas, nem dá condições a elas para terem uma moradia adequada. O que acontece é o cadastro no sorteio para o Minha Casa Minha Vida, no entanto, muitas vezes, não há previsão de quando um conjunto habitacional será construído para que, a partir disso, haja esses sorteios. Além disso, as Zonas de Especiais de Interesse Social, destinadas, prioritariamente, às habitações populares, não estão regulamentadas e o município não sinaliza interesse em efetiva-las.

O problema da remoção depende do tanto de áreas que serão removidas, é o que explica Renato: “até que ponto a remoção e o reassentamento ainda é a medida mais efetiva para resolver o problema da favela? ”, isto porque os despejos também podem resultar no endividamento do município, pois se gasta com a obra de remoção e a construção de novas casas para reassentar as famílias, “tem um efeito ainda mais perverso que é a população que vai ser removida, vai ser retirada da área onde construiu suas relações sociais, na verdade é um tipo de política que vai aumentar as desigualdades”, evidencia o professor. Ainda, sabe-se que o problema da favelização é resolvido através da regularização urbanística, ao se disponibilizar infraestrutura e melhores condições de moradia sem remover. Por fim, a advogada Mayara Justa conta que, com o grande número de remoções, muitas famílias estão ocupando terras na região metropolitana, fazendo com que se crie novos índices de desocupações violentas fora de Fortaleza.


*Reportagem produzida por Aline Medeiros estudante do Curso de Comunicação Social da UFC e bolsista do Lehab. Produzida no âmbito da pesquisa Observatório de Remoções

*Foto de Elitiel Guedes. Despejo do Alto da Paz, 2014.

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